quarta-feira, 20 de outubro de 2010

“In Glória"

Passa-me o cinzeiro…disse uma voz rouca ecoando no ar, enquanto tossia convulsivamente.
Um dia destes essa merda mata-te, disse-lhe ele em tom grave.
Se não for isto há-de ser outra coisa…pensas que quero ficar cá para semente, disse-lhe ela em tom irónico.
Podias ao menos fazer um esforço para diminuir, passavas a ser uma melhor semente… ela começou a rir ás gargalhada.
Ele sentia-se miserável, barba por fazer, ar desleixado…havia uma semana que não saía de casa.
Carregava um peso de um mundo, o dele, aquele que mais pesa, aquele que ninguém ajuda a carregar… puta de vida, este só eu o posso carregar, pensava para com os botões dele!
Ela caída num maldito vai e vem, era o esboço que desvanecia do que tinha, pretensamente, sido alguém…no farrapo esgaçado que envergava, sonhava que despareceria mais depressa se apressa-se num esforço inglório a sua existência, que queria perene e sem qualquer registo…
Porque negas a vida, perguntava-lhe ele muitas vezes irritado…mais uma vez o fez, dizendo-lhe, não queres glória mas porque achas que a irias ter, ou que a merecerias… tu és a antítese da tua própria negação, tu queres existir mas tens medo e escondes essa vontade na maldita bebida e na merda do tabaco…tu não te destróis, tu consomes a própria vida como se ela fosse um vício que tens e que não consegues largar…olha para ti, que vês, a miséria…ou a ideia que descobriste algum caminho que te levará a alguma espécie de santuário onde terminará a tua missão, que tens como pesada…foda-se há gajos que levam uma vida inteira a levantar-se ás sete da manhã para ir trabalhar e um dia dizem-lhe estás despedido e metem uma corda ao pescoço ou atiram-se para baixo de um comboio…que pensas que tens de diferente deles, interrogou-a…que tens alguma missão e que eles foram os carneiros que nunca souberam o que era esta vida sensível e artística, disse-lhe em tom áspero…és igual, quando confrontada com uma vicissitude, não passas de mais um carneiro mas com uma função diferente, a de olhar a sociedade como um laboratório onde os outros são os pobres coitados e tu a coitada pobre, por ver mais além e que tal visão, de ampla, te cega…pois julgas que é muito o que vês, que é quase uma cegueira por invasão de saber, continuou ele em tom mais brusco…tens o síndroma de Pessoa, mas sabes, disse-lhe… falta-te o talento dele, ele lamentava-se mas fazia-o para o papel e para ele, de manhã ia trabalhar a voltava todos os dias á mesma vida, conheces-lhe algum milagre, interrogou…só o milagres da poesia e desse ele não tinha consciência de importante que era, se um dia a tivesse tido acredita que não seria tão bela e enigmática a poesia e a sua prosa…a consciência mata a genuidade, exclamou.
Ela lançou-se num pranto, ele olhou-… aproximou-se, abraçou-a e colocou-lhe a cabeça junto do seu ombro e disse-lhe, todos os dias o sol nasce, mesmo que tapado pelas nuvens ele está lá… achas isso uma lamechice não é, pois imagina que o sol se enjoava de tal… a vida não é fácil, mas nós não estamos cá para cumprir uma missão, nós passamos, talvez, para viver apenas, aprender e olhar o sol, o mar, a lua e todos os elementos que fazem a beleza e aqueles menos belos e que são a feiura dos locais por onde passamos, disse-lhe em tom calmo…a capacidade de observar e saber aproveitar o bom, o mau, o belo e o feio é que pode fazer de nós diferentes…ninguém sabe o segredo da vida, sabemos apenas que designaram chamar-lhe isso e que não é eterna, esfuma-se e um dia desaparecemos… não te desperdices… olha para mim… disse-lhe levantando-lhe o queixo com as pontas dos dedos… julgas que me tenho como algum messias, interrogou-a…sabes o que penso, continuou… nunca saberemos para que servimos, mas não será, com certeza, nessa busca que seremos felizes ou infelizes, isso é uma diversão para nos abstrairmos da verdade e para que um dia quando nos dermos conta que passámos por algum lado chamado vida, percebermos que havia lá tanta coisa para fazer e afinal estivemos distraídos a olhar para nada, para um lado que não tem saída…colocamo-nos no beco sem saída de forma voluntária, sai dele, sai por favor…tu és um ser belo, a vida és tu!